Venho das Minas Gerais, da Zona da Mata, de Juiz de Fora, de Santo Antônio de Chiador, da pequena Valadares. Região cercada por montanhas e que em meu imaginário infantil era banhada pela ferrovia.
Conheci o desenho riscando o barro, terra molhada, terreiro infinito, brancura de pós - chuva, retorno dos pássaros.
Minha pintura é uma colcha de retalhos. Pequenas porções de cores e fatos que garimpo diuturnamente em meu malão do inconsciente. Um mosaico incomensurável estendido sobre planos da memória.
DOMINGO,
Café no bule,
Rádio ligado,
Gato no borralho.
O terreiro varrido,
Boi na canga,
Cavalo arreado.
DOMINGO,
Embornal pendurado,
Cartilha fechada,
O pião girando,
O aro rodando,
Caniço na mão,
Mão no guidão,
Enxada encostada.
DOMINGO,
Pé na estrada,
O calçado na mão,
A roupa de missa,
Badalo de sino,
Chapéu quebrado,
Vestido de chita,
Banho tomado.
DOMINGO,
O trem na estação,
Movimento na feira,
O jogo de malha,
A bola na várzea,
A banda na praça,
Sanfona no bar,
Pinga no papo.
DOMINGO,
A parentalha indo embora,
O lotação na poeira,
O forró no salão,
No coreto, leilão,
O lampião no alpendre,
A brasa no fogão...
Um “causo” contado.
Atualmente todos navegam... Ninguém mais chacoalha no trem.
É o trem do tempo passando...
É o trem do tempo mudando...
Com a exposição ESTAÇÕES, venho dar prosseguimento à minha proposta plástica de trabalhar temáticas ligadas ao cotidiano mineiro, resgatando suas raízes e peculiaridades.
Acomodar-me por alguns momentos em um banco de uma estação qualquer e viajar no tempo. Imaginar aquele pequeno ponto escuro misturado a uma névoa e que ao longe confundia-se com o perspectivo ponto de fuga, um ponto crescente que, quanto mais se aproximava, mais se definia em formato e som, até estourar como um gigantesco animal de ferro recoberto por telhas enfumaçadas.
O entra e sai de gente, o amontoado de malas e bolsas, o volume das cargas, os reencontros e despedidas, o telégrafo, a balança, os flertes, a imponência do maquinista contrastando com a correria dos ambulantes e carregadores.
De repente... o apito, o tranco, o vapor subindo e todo aquele conjunto se movendo, indo embora, deixando reestabelecido um temporário silêncio de estação.
Fazer uso de traços e cores simples e impor ao meu trabalho uma estrutura narrativa vem sendo meu desafio e minha persistência. Em meio a tantas transformações de valores culturais e sociais, ouso fazer esse resgate, e o faço com convicção e prazer.
O rio, as margens, o tempo...
Paraiuna,
Traçado cristalino
Riscando a mantiqueira.
Rio dos “caxinoás”,
Dos dourados, traíras, lambaris, cascudos e acarás.
Águas turvas,
Margens alagadiças
Das araucaias, aroeiras e camarás.
Rio barro,
Rota de aventuras e tocaias,
Bússola dos bandeirantes,
Saga do ouro e do sal,
Guia de tropeiros...
Caminho novo
Parahybuna,
Serpente barrenta e silenciosa
Engolindo cidades,
Cachoeiras, hidrelétricas...
Teares progresso... condenação.
Paraibuna,
De margens acolhedoras
Onde aos sábados, prostitutas se esmeram
E aos domingos uma feira etílica se acotovela
Vendendo cacos e almas.
Paraibuna.
De pneus e pet’s.
Do mercúrio e do chumbo,
De capivaras persistentes.
De molinetes utópicos.
Rio de muitas histórias,
Deságue de minhas escórias,
Espelho de nossa indiferença.
Engraxar sapatos, muito sapatos, era um bom ofício. Anilinas, escovas, conversas, pessoas. E sapatos pretos, marrons, que eram lustrados e ao final da tarde envoltos em um colcha quadriculada em cores e entregues de casa em casa.
Embora quisesse eu estar entre semi-círculos e triângulos, que desde os tempos de terreiro de fazenda eu gostava de riscar, estava ali, em minha lida infantil, assentado sobre a pequena caixa de madeira, que a duras penas e pregos havia confeccionado.
Um par de “havaianas”, um embornal com bolas de gude novinhas, um caderno sem capas, um lápis mordido, um olhar mirando o zigue-zague das pipas e a liberdade dos papagaios “mandados” ao sabor dos desmandos dos ventos.
A vista de meu posto de trabalho era privilegiada. Do alto da “Colina dos Passos” podia observar que, de tempos em tempos, além do “Duque de Caxias” e da “Santa Casa”, os grandes cubos cinza de concreto se multiplicavam e marchavam pela avenida “Rio Branco” em direção ao meu universo.
Eram anos de um estranho silêncio, de poucas perguntas e muitas respostas evasivas. No grupo escolar copiávamos o “Hino Nacional”, desenhávamos a bandeira em sua geometria perfeita: jamais o perímetro do círculo podia extrapolar os limites do losango.
Em minha caixa de graxas o mundo era um palco lúdico construído por meus traços sobre um caderno esfarrapado que, por precaução, vivia escondido no pano de lustrar sapatos.
Movido por um desconhecido impulso que me fascinava, lápis em punho, soltava-me a desenhar (rabiscar) os carros, as pipas e principalmente os bondes, suas formas, movimentos e trajetórias.
Os bondes que me levaram à primeira escola e por vezes à cidade para comprar um novo par de “verlon”, gaiolas dinâmicas sem portas e janelas que me transportavam da simetria das diminutas casas para a imensidão vertical dos arranha-céus, melhor que desenhá-los só mesmo a aventura de correr para alcançá-los e descair de seus estribos ainda em movimento.
Os bondes se foram e eu tomei o lotação rumo à cidade. Quitanda São Francisco, Marechal Quarenta e Cinco, soava o apito do Xangai... corrida em direção a estação central, balaio nos ombros, salto sobre os trilhos, pão com salame, “guaraná pérola”, o jogo do bicho, o beco das “meninas”, o bilhar, a pinga Araci... outras leituras, novos desafios paro o olhar para a cabeça e para o grafite.
Tecnicamente ocorreu-me uma significativa evolução: o suporte para o traço já não eram as folhas do caderno, como era incorrigível e veloz a ponta da esferográfica deslizando sobre a maciez das embalagens de “Minister” e “Hollywood”.
Do comércio para o operariado foi um pulo, carteira assinada, “Indústrias Reunidas Maravilha”, lá no alto da “Olegário” de onde se via toda a cidade, ali eu e meu desenho encontramos um artista refinado: Carlos Gonçalves. Perspectiva, luz, sombra, pintura, serigrafia, aprendia observando o seu fazer passo a passo, já que uma das minhas inúmeras atribuições dentro da empresa era aos sábados faxinar o atelier do artista, acho que foi a primeira vez que ouvi a palavra, atelier.
Do patrão benevolente recebi, além de conselhos, alguns tubos retorcidos de tinta “Águia”, com os quais pintei meu primeiro quadro pela primeira vez, visto que de tempos em tempos a pintura desbotava requerendo-me uma nova intervenção e experimento de novos procedimentos técnicos. Este faz e refaz, fez-me formar uma opinião de que a cor era o corpo da pintura e que o desenho mesmo que inócuo era a alma; do imaginário.
Algum tempo depois desse enorme aprendizado fui trabalhar com Eliardo França, uma de minhas escolas da cor, bico de pena, pincéis, um mergulho nas transparências e energia das cores do Ecoline.
Já não pintava mais sapatos, criava estampas, letreiros e outros meios de sobrevivência que me permitisse a pintura em paralelo.
Ingressei na Universidade Federal de Juiz de Fora, cursando “Licenciatura em Desenho e Plástica”, novos conceitos, filosofias, novas técnicas e inúmeras possibilidades. Não sei se por necessidade ou vocação caminhei para o magistério, superei o medo de mostrar, de expor, tirei meu velho caderno de desenhos do pano de lustrar sapatos.
No interminável corredor do Centro Cultural Pró-Música, onde lecionava desenho de observação, conheci Claro de Campos, Jaime da Costa e Renato Stehling, artistas na concepção da palavra, figuras desprendidas do egoísmo do saber e capazes de sintetizar a complexidade da Arte em uma boa prosa.
Incentivado por esses e outros tantos amigos realizei no início dos anos 80 a primeira de uma série de exposições sempre retratando a Minas que me percorre e a Juiz de Fora que me arremessa e acolhe. Cartas de Minas, Estações, Trilhos, Bondes, Alpendres, Cristo Redentor, Paraibuna, Halfeld, Guia para Viajantes...
E assim de retalho em retalho venho costurando minha colcha existencial, procurando fazer da pintura um eterno aprendizado, fazer do verbo e da cor um fio condutor vivo que conecte meus pensamentos e vivências ao meu meio a minha cidade. Ciente de que existem diferentes olhares e conceitos estéticos, que a arte que é já não é mais. Que a persistência que nos consome nunca nos deixa de apontar caminhos. Acreditando no poder transformador das linguagens e códigos visuais e na magnitude da arte que pode nos propiciar momentos de enorme paz contidos em pequenas porções de cores, em algumas palavras em um simples traço.